Se você é um pouco mais velho provavelmente cresceu ouvindo – ou ainda, acompanhou, sobre a tragédia dos Andes. Eu conhecia a história, até assisti o filme Vivos (1993), mas sempre foi algo muito distante de mim, um quê quase fictício que não tinha impacto. Foi com a recém estreia do filme A Sociedade da Neve que eu pude, finalmente, compreender a magnitude da situação.

Em 1972, um avião fretado por uma equipe uruguaia de rugby atravessava a Cordilheira dos Andes rumo à Santiago, no Chile. Nele, 45 passageiros estavam a bordo entre funcionários, jogadores e familiares. Era para ser uma viagem divertida. Entretanto, no dia 13 de outubro, devido ao mau tempo e falta de visibilidade, o avião se chocou contra a montanha deixando-os à mercê no meio de um nada gelado. Eles não sabiam, mas iria demorar 72 dias para que fossem, enfim, resgatados. Para conseguir resistir, seria necessário um rompimento com seus próprios princípios: a única fonte de alimento em quilômetros eram os corpos daqueles que não resistiram à queda.

Com extremo cuidado e sensibilidade, o diretor Juan Antonio Bayona nos apresenta a tragédia com um olhar humanizado, construindo a história para além do canibalismo forçado que se submeteram. Um filme de sobrevivência que aborda as angústias, a determinação de grupo formado, em sua maioria, por jovens em seus vinte anos, cheios de sonhos e expectativas para o futuro, presos em um vale congelado no meio dos Andres. Agarrando-se na fé em serem resgatados, na fé em Deus, mas, acima de tudo, na fé que confiavam um ao outro em sobreviver uma noite após a outra naquele lugar inóspito.

Dos 45 passageiros, apenas 29 sobreviveram à queda e mais tantos haviam se machucado. Choque, medo e luto precisam esperar e dão espaço à presença de espírito de conseguirem se unir e planejar os próximos passos. A determinação em se manter vivos, a engenhosidade necessária para combater o frio, que poderia chegar a 30 graus negativos à noite, cuidar dos doentes e organizar expedições para alcançar outras partes do avião, os mantem vivos. É impressionante. A montanha os desafiava e, apesar de tudo, continuavam contra todas as possibilidades.

A escolha em comer a carne daqueles que haviam morrido não viria sem muita dificuldade e questionamentos. Não havia outra opção se quisessem sobreviver. Por fim, eles coletivamente concordaram que, caso não sobrevivessem, seus corpos poderiam ser usados como alimento. “Não há amor maior que dar a vida pelos seus amigos”, escreverá um deles.

Dos 45 passageiros, apenas 16 saíram da montanha com vida. O resgate viria após Fernando e Roberto se agarrarem ao último fio de esperança e decidirem atravessar a cordilheira no que resultou em 10 dias de uma intensa e difícil caminhada até encontrarem ajuda. Como eles foram capazes estando fracos, doentes e despreparados é além de mim. Coisas que somente Deus poderá responder um dia.

Além da história, que por si só é intensa, a produção foi também incrível. O silêncio ensurdecedor das montanhas é acentuado em takes sem música, passando a hostilidade do lugar. É lindo e terrível ao mesmo tempo. Os atores deixaram os cabelos e barbas crescerem e emagreceram, agregado à maquiagem para deixa-los queimados do sol e da neve, seus olhares envelhecidos pareciam que haviam, de fato, passado por tudo aquilo eles mesmos.

Mas um dos maiores acertos foi a narração. A reflexão vinda pela voz de Numa que nos acompanha o filme inteiro, oferecendo uma parcela dos pensamentos que compartilhavam naquele período. Numa, infelizmente, não saiu da montanha. Numa dá voz aos que, como ele, não puderam contar sua história.

O filme é baseado no livro de mesmo nome escrito pelo jornalista Pablo Vierci, mas a produção foi acompanhada de pertinho pelos sobreviventes que estiveram nas filmagens e ofereceram feedback no roteiro. A presença deles sem dúvida é notável no trabalho final de Bayona, que entrega um trabalho excepcional que demorou mais de dez anos para chegar às telas. Um trabalho feito com tamanho esmero que não me surpreende seu impacto (e ao meu ver merecia até mais destaque nas premiações).